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Amar a Igreja? Ainda é possível?

Ir. Martina Braga OSB[1]


[1] Monja beneditina na Abadia de Santa Walburga, Alemanha; doutora em História da Igreja contemporânea pela Universidade de Navarra, Espanha; professora de História e Doutrina Social da Igreja; autora de ‘Lições de Gustavo Corção’, Quadrante, SP.

            Há um episódio, encontrado aqui e ali em fontes muito diversas, que certamente tem um quê de fundo histórico. É uma história por demais realista para ter sido inventada. Em qualquer caso, tendo acontecido ou não, a narração traz em si uma verdade muito profunda que, me parece, merece ser lembrada e repetida.  

            No século XV, em plenos tempos da Renascença, moravam em Paris, França, um cardeal e um judeu. Eles tinha estudado juntos, conheciam-se muito bem e eram excelentes amigos. Sendo ambos pessoas piedosas e tendo grande confiança um no outro, era natural que nas suas longas conversas o assunto religioso sempre viesse à tona.

            O judeu procurava convencer o cardeal de que Jesus não podia ser o Messias esperado. Os cristãos não se parecem nada com o povo santo da nova e gloriosa Jerusalém, ele argumentava. O cardeal, por sua parte, retorquia ao amigo: ‘Vive o cristianismo profundamente, descobre a Jesus pessoalmente, e tu verás que Ele é quem que tu procuras…’ Os dois sorriam, a discussão parava aí e a estima mútua permanecia inabalada.

            Até um dia em que o judeu anunciou ao amigo, com um sorriso maroto: ‘Negócios importantes me chamam em Roma por três meses. Parto amanhã. Quem sabe agora não me converto? Se tu rezares especialmente ao teu Jesus…’

            Para sua surpresa, o cardeal alarmou-se. ‘Roma? Precisas mesmo ir lá? Por que não resolves teus assuntos por cartas?’

            ‘Ora, ora, e eu pensei que a notícia te deixaria exultante! Lá, ao pé do túmulo do Apóstolo Pedro, não é a oportunidade de ouro que tu esperavas para que o meu espírito abraçasse a tua fé?’

            O cardeal calou-se e o seu rosto sério mostrava uma grande preocupação. Ele sabia bem que a Roma da Renascença era o pior exemplo que o seu amigo poderia ter da religião cristã. Nepotismo, orgulho, avareza, politicagem, luxúria… nada disso faltava no clero romano, e nem mesmo no palácio pontifício. O bom judeu era um homem de vida honrada e honesta, sua conversão era agora um caso perdido. Que ironia… o amigo iria a Roma e ela seria causa do seu afastamento definitivo da Igreja.

            O bom cardeal suspirou. ‘Que o Deus único e todo-poderoso te guarde, meu velho companheiro. O único que eu te peço é que perdoes a fraqueza dos cristãos… e não meças por eles a divindade do Mestre…’

            Os três meses se passaram. O cardeal rezava todos os dias pelo bom judeu mas a certeza de que este regressaria indignado e definitivamente fechado a qualquer centelha de fé cristã deixavam-no acabrunhado e triste.

            Numa tarde de inverno, sentindo-se velho e cansado, o bom sacerdote rezava o seu rosário junto ao fogo já meio apagado da lareira e pedia à Virgem Mãe que olhasse pela Igreja em tão doloroso estado. Nisso bateram à porta e, antes que ele pudesse levantar-se, lá entrou o seu velho amigo judeu.   

            Vinha bronzeado, sua espessa barba tinha sido aparada, seus olhos brilhavam com típicas inteligência e bondade. E, no entanto, algo nele parecia novo, diferente… O cardeal levantou-se e estendeu as mãos. Seu coração se preparara para escutar as palavras amargas que o outro certamente lhe diria acerca da sua viagem. Qual não foi a sua imensa surpresa quando o judeu se ajoelhou diante dele e disse, com voz firme mas comovida:

            ‘Eu peço que tu me instruas nas verdades da fé cristã e me batizes. Logo que possível.’

            Seria uma brincadeira de mau gosto? Não, isso não combinava com o amigo, homem piedoso e sério… O cardeal perguntou, confuso:

            ‘O que houve? O que tu estás dizendo? Ser batizado? Mas então Roma…’

            ‘Roma é uma das cidades mais corruptas que eu já visitei. O clero é lastimável e a política eclesiástica um escândalo. Luxo e miséria convivem lado a lado, rodeados de intrigas, interesses escusos, e carreirismo. O celibato é praticamente desconhecido. O orgulho insuportável.”

            ‘E no entanto…? Tu pedes ainda o batismo? Não entendo…’

            ‘Meu bom amigo, eu tenho uma longa experiência e uma intuição infalível para achar objetos de valor. Eu posso detectar a autenticidade de uma pedra preciosa mesmo que ela esteja coberta de lama ou envolta na poeira dos séculos. Em Roma eu vi essa lama e essa poeira. Mas a pérola estava lá. Em meio à toda aquela corrupção permaneciam inalteráveis a beleza da liturgia, a força dos sacramentos, a autenticidade da palavra de Deus. Mesmo o clero, que perde as almas pelo seu mal exemplo, prega ainda uma verdade que é superior a eles. Se eles seguissem o que eles mesmos dizem, seriam santos. E da boca do Santo Padre, ainda que não das suas ações, saem doutrina e moral íntegras. Mais do que tudo, em meio a toda aquela balbúrdia, eu vi pessoas – sacerdotes, religiosos e leigos – que vivem com sacrifício e modéstia os mandamentos de Jesus. Gente cheia de caridade, de humildade e de fé. Eu descobri a pedra preciosa. Uma igreja que, apesar de todo o pecado dos seus membros, sobrevive mil e quinhentos anos com a sua doutrina perene e é capaz de suscitar pessoas santas em meio ao lamaçal do mundo, só pode ser verdadeira. É Deus que está por trás dela. Eu creio agora no Senhor Jesus.’

            Nós vivemos no século XXI. Temos a graça imensa de presenciar uma longa sucessão de papas santos. Roma não é mais hoje a Roma da Renascença. Os exemplos de vida sacrificada e dedicada a Deus são também inúmeras na nossa Igreja – quantos santos modernos canonizados, alguns dos quais nós vimos ainda nosso meio!

            E, no entanto, também nos nossos tempos há a lama e a poeira. O carreirismo eclesiástico, a falta de firmeza na fé, o mundanismo, o deslumbramento perante a riqueza e a fama, a falta de fidelidade, a superficialidade e a fraqueza de caráter, a corrupção ideológica da doutrina e da moral, tudo isso são problemas que atingem a todos nós, católicos modernos, clérigos, religiosos e leigos. E quando isso chega a pecados gravíssimos como os abusos sexuais e a blasfêmia com relação aos sacramentos, a dor de todo o povo de Deus é imensa e as vítimas, diretas ou indiretas, incontáveis. Deus tenha piedade de nós.

            Nada disso, porém, destrói a pedra preciosa. Ela permanece lá, ainda que coberta de detritos. E é nela que está posta a nossa fé, não nos detritos. E a ela que nós devemos amar, não a sujeira que a envolve. Quando nós dizemos no Credo: eu creio na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, o que dizemos é que cremos nesta pedra preciosa, na esposa mística de Cristo, na sociedade daqueles que, pela sua vida santa, seguem os ensinamentos do Bom Pastor.

            Cremos na palavra de Deus, na reta doutrina, na moral íntegra e pura, na força dos sacramentos, na comunhão dos santos que fazem parte da Igreja, aqui e no céu. Cremos que Deus garante a infalibilidade do Santo Padre em questões de fé. Cremos na união dos bispos com o papa. Cremos no valor da ordenação sacerdotal. Cremos na autenticidade da vida consagrada a Deus. Cremos na santidade das famílias. E isso tudo apesar dos defeitos individuais que todos esses membros – nós entre eles – possam ter.

            Por quê? Em última análise porque cremos em Nosso Senhor Jesus Cristo, fundador e cabeça da Igreja, e na Sua promessa de que as portas do inferno – por mais que tentem – não prevalecerão contra ela. Na Igreja há lama e sujeira deixada pelo pecado, mas só nela descobrimos, por baixo dessa crosta impura, a pedra preciosa, única e verdadeira. Fora dela pode haver, aparentemente, menos poeira. Mas não há nada mais do que bijuteria. A pedra preciosa é o Senhor, Ele mesmo, e as Suas promessas.

            Em tempos de crise, em temos de lamaçal, agarremo-nos com amor à pedra preciosa e não a percamos de vista: a palavra de Deus, os sacramentos, a vida de santidade, a fidelidade às nossas promessas, a obediência ao magistério legítimo da Igreja, o exemplo e a intercessão dos santos, especialmente da Bem-aventurada Virgem Mãe. Ancorados e seguros, podemos lutar contra as tempestades sem que elas nos atinjam. Podemos manter a serenidade e a alegria dos confessores e dos mártires. Podemos saber-nos sempre acompanhados do céu. Podemos ser firmes na esperança, na fé e na caridade. Podemos seguir adiante, seguros de que o mundo passará, mas o Cristo permanece o mesmo na Sua Igreja, ontem, hoje e sempre.  

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