Homilia 26/01/2020 – 3º Domingo do tempo Comum
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Martina Braga OSB[1] ____________________________________ O
tempo litúrgico do Natal, que celebramos durante duas ou três semanas, até a
festa do Batismo do Senhor, nos faz reviver mais de perto o início da vida de
Jesus aqui na terra. Ano após ano, relembramos a anunciação, a visita à prima
Isabel, o anjo que fala com José em sonhos, o estábulo em Belém, os magos do
Oriente, a fuga ao Egito… As leituras do Antigo e do Novo Testamento falam de
profecias e histórias que conhecemos desde crianças. Sabemos com exatidão o que
vai acontecer. Nossa Senhora vai dizer o seu sim, São José vai seguir as
instruções do anjo, os pastores vão visitar o Menino recém-nascido, os magos
vão trazer ouro, incenso e mirra, e assim por diante. Esse
rememorar de narrações já conhecidas tem o propósito fundamental de nos ajudar a
meditar ainda mais profundamente o mistério de Deus feito carne, a fim de amá-Lo
mais e melhor. E, no entanto, mesmo celebrando essas festas com devoção e fé,
corremos o perigo de tomarmos esses fatos como óbvios e inevitáveis. É como se
Maria e José, Isabel, os pastores, Herodes e os magos fizessem parte de um
teatro, com papéis determinados, assim como nós pomos as figuras do presépio,
cada uma no seu lugar… Tantas vezes nos esquecemos de que essas figuras
representam pessoas dotadas de liberdade e de razão, que poderiam, se
quisessem, ter escolhido caminhos diferentes. Deixemos
correr a nossa fantasia por um momento, com a reverência que o assunto exige
mas com o realismo e a confiança de filhos de Deus. Imaginemos que Nossa
Senhora, ao escutar o anjo, preferisse responder algo como: ‘eu preciso de um
tempo para pensar…’ Ou: ‘não, isso é grande demais para mim…’ Ou ainda: ‘quero
saber dos detalhes, como vai ser, o que vai acontecer, o que eu vou ter que
fazer…?’. Embora tenha sido concebida sem o pecado original, Maria conservava
inteiramente a sua liberdade e poderia ter duvidado, rejeitado ou desconsiderado
a vontade de Deus… O que teria sido então de nós, como se pergunta São
Bernardo? Consideremos
José. Imaginemos que, ao ouvir a explicação do anjo, ele hesitasse e, em lugar
de tomar Maria como sua esposa, decidisse que era menos arriscado esperar até a
criança nascer… Ou que ele se revoltasse contra a ordem de levar a família
até Belém e acabasse preso pelos romanos… Ou que ele não acreditasse na
ameaça de Herodes e achasse melhor não fugir para o Egito… Pensemos
nos pastores, exaustos do trabalho, buscando um merecido repouso na noite fria.
Não seria de espantar que, depois de ver o coro dos anjos, acabassem voltando a
dormir. E quem poderia acusar os magos, se eles desistissem de procurar pela
estrela e ficassem em Jerusalém, confusos e desapontados? Ou o velho Simeão, se
ele tivesse perdido a esperança de ainda ver o Messias em vida…? Essas
conjecturas nos parecem absurdas. Sabemos que não foi assim! E, no entanto, isso
tudo poderia bem ter ocorrido… Todos estes personagens históricos são seres
humanos em tudo iguais a nós, com suas dificuldades, limitações, fraquezas e –
com exceção de Nossa Senhora – com seus pecados. Deus, na Sua infinita doçura e
bondade, quase com humor, quis pedir e depender da virtude dessas pessoas para
realizar o Seu plano… O
que determina o gigantesco valor desses personagens da História Sagrada não é, portanto,
como muitas vezes pensamos, uma espécie de inércia pueril frente à arbitrariedade
divina, como se eles obedecessem por ingenuidade. Não, muito pelo contrário, cada
um deles foi chamado e convidado individualmente por Deus para cumprir o seu
papel na salvação da humanidade. A santidade deles consiste exatamente em ter aceitado,
livre e conscientemente, apesar de todas as suas falhas e dúvidas, esta
confiança de Deus… No
começo de cada novo ano a mesma questão se apresenta de certa forma à
consciência de cada um de nós. O que fazer da minha vida, dentro das
circunstâncias que me cercam? Deus nunca está ausente. Ainda hoje Ele nos chama,
pessoalmente, a ser aquilo que Ele desejou para nós. A segui-Lo, mesmo que obscura
e humildemente como Maria, José e os pastores. A dizer o nosso fiat a Sua vontade, mesmo quando ela
discorda da nossa. A confiar, em última instância, na sua Palavra e no Seu
Amor. Essa
é a grande decisão das nossas vidas… Essa é a resolução que pode mudar a
História, a nossa e a dos outros. Santo Agostinho diz que tudo o que é bom,
belo e justo é construído justamente sobre a nossa escolha pessoal de amar a
Deus até o ponto, se necessário, do esquecimento de nós mesmos. Ao contrário, ele
afirma, o mal é trazido ao mundo pelo amor-próprio egoísta, pelo nosso orgulho,
que chega ao absurdo do esquecimento de Deus. Esses
termos nos parecem talvez muito duros. Santo Agostinho era um pecador como nós,
sabia bem o quão difícil é o mundo e certamente não condenava o amor saudável
de si mesmo, reflexo do Amor de Deus por nós e condição do nosso amor ao
próximo. O que ele quer dizer então? Simplesmente que o amor verdadeiro implica
numa entrega plena, madura de si mesmo. E que só esse amor pode construir o bem
e a felicidade. ‘Ama e faz o que queres’, escrevia ele ainda, porque no amor
verdadeiro – na caridade que vem de Deus e que se reflete no próximo – já estão
contidas todas as virtudes. São
Paulo também nos adverte com firmeza: sem esse amor, sem essa caridade, a rigor
nada do que fazemos tem valor. É esse amor que move os santos. Não um sentimento
volúvel, apoiado nos gostos e temperamentos, irracional, hoje entusiasmado,
amanhã deprimido. Mas sim uma disposição livre da vontade, meditada, firme, perseverante.
Um amor que é capaz de dar-se mesmo aos inimigos e de sobreviver às mais duras
decepções. Um amor que é o retrato do Amor que Jesus teve por nós. Voltemos
ao presépio. A resposta de Maria ao anjo foi perfeitamente consciente, como nos
diz o Papa Bento XVI no seu livro sobre a infância do Senhor. Maria se
surpreende, cogita e então aceita, com a plena concordância da sua razão e da
sua vontade. José tampouco age irracionalmente. A todo momento se faz
necessário que ele use o seu discernimento, desde a sua reação ante a noiva que
espera um filho até achar lugar em Belém quando as estalagens estão cheias,
circundar e dar o nome ao Filho de Deus, estabelecer-se na Galileia e não na
Judeia ao regressar do Egito, e assim por diante. O mesmo se pode dizer dos
pastores, magos e outros personagens. Buscam, escutam, meditam, agem. São
inteiramente humanos, também nas suas perplexidades, medos e fraquezas. O
que os distingue de nós, talvez, é a prontidão humilde da sua resposta. Quando percebem
a vontade de Deus, mesmo que não a acabem de compreender perfeitamente, eles
não hesitam. Vencem as suas dúvidas e receios e têm a coragem de ir em frente. As
virtudes da fé e da esperança exercem aqui um papel fundamental – sem elas, essas
pessoas não poderiam caminhar rumo a um futuro desconhecido, certamente
exigente e incômodo. Mas, sobretudo, é o amor de Deus que lhes leva a essa
prontidão e a essa entrega. Uma vez tudo visto, meditado e considerado, só o
amor tem a força de tomar a decisão e dar o passo adiante. Conta-se
que o grande mártir inglês, São Thomas Morus, recebeu a visita da sua filha
mais velha na prisão, enquanto esperava a sua execução. Morus tinha sido
chanceler do reino, era pai de família numerosa, homem de primeira importância
social e uma das mentes mais brilhantes da Europa do seu tempo. Estava preso
por ter-se negado a aceitar a autoproclamação do rei – seu antigo amigo – como
cabeça da igreja na Inglaterra. A filha, que o amava muito, tentava convencê-lo
de ceder às pressões da política e usava para isso os melhores argumentos
intelectuais. Numa cena memorável do grande filme ‘O Homem que não vendeu sua
alma’, vemos Morus abraçar a filha dileta com carinho e explicar docemente: ‘Os
seus argumentos são finos e inteligentes… mas você não vê? No fundo, isso é uma
questão de amor… Eu amo o Senhor Jesus e não posso traí-Lo…’ Gustavo
Corção, escritor católico, convertido já na meia-idade, descreve assim a sua resposta
à fé: ‘Deus nos chama e nos ajuda, mas de repente ficamos numa situação inaudita,
porque nos compete responder. Quase se pode dizer que nesse instante incrível
há um silêncio de Deus. Todos os santos calam-se… Estamos subitamente sós e
livres… E temos de fazer um pequeno ato, uma insignificância, um gesto de
amor, uma coisa de nada que tem a capacidade de encher um silêncio de Deus.’ A história do Natal, nos damos
conta, é no fundo uma história de amor… E nós? Qual a nossa reposta? Temos
nós o desejo e a paciência de buscar e escutar a voz de Deus que nos fala ao
coração? Através dos sacramentos e da oração, sobretudo, mas também dos
acontecimentos mas corriqueiros, das pessoas que nos cercam, das boas leituras
e dos bons conselhos? E, quando percebemos com clareza o que Deus quer de nós,
temos a coragem de responder o nosso fiat,
mesmo que isso implique mudar os nossos próprios planos, como Maria e José? Muitas vezes o que nos atrapalha
neste caminho é a noção errônea de que Deus só fala através de acontecimentos
sensacionais… Pode Deus estar falando comigo, um pecador, dois mil anos após
o Seu nascimento, em meio a essa vida moderna e frenética, no meu trabalho,
família, círculo de amigos? E, contudo, o que pensavam Maria e José…? Como
podiam acreditar que Deus falasse com eles, gente pobre e simples, em meio ao
trabalho duro e à vida modesta de uma aldeia, perdida nos confins do Império
Romano? Ou os Magos? Como acharam tempo de ouvir a voz de Deus em terras tão
distantes, nos seus palácios, em meio as suas riquezas e aos seus estudos? Ou
os pastores, cansados e preocupados com as suas ovelhas? Pensamos outras vezes que a vontade
de Deus tem necessariamente que se mostrar inteiramente, nalgum plano completo
e acabado. E, de novo… tinham Maria, José, os pastores e os magos alguma
ideia do que iria acontecer? Quando o velho Simeão prediz o sofrimento de
Maria, ela certamente se espanta… E José, que não pôde nem estar no Calvário,
junto à Cruz do Filho que ele tinha criado? Meditemos nas nossas resoluções para
o novo ano. É pouco provável que Deus nos vá pedir, nesse ano que começa,
feitos fantásticos ou grande aventuras piedosas. O mais certo é que Ele vá
pedir o que já pede: a paciência e fidelidade do dia-a-dia. Isso soa banal, sem graça, sem brilho. E, no
entanto, é maravilhosamente heroico, belo, cheio de alegria e de amor… São
Josemaria Escrivá costumava dizer que o segredo da vida é transformar o
extraordinário em ordinário, e o ordinário em extraordinário. É isso exatamente o que Maria e José
fizeram. Nada pode haver mais desconfortável do que um estábulo, nada mais
corriqueiro do que uma mulher jovem que acalenta o filho recém-nascido, nada
mais comum do que rudes pastores que andam no meio da noite. Para eles, que
viveram essas cenas, aquilo tudo talvez se apresentasse como um anticlímax… O
Messias esperado há séculos, o Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, nascer
assim…? Essa criança simples, ainda mais pobre do que as outras crianças, pode
ser o Filho de Deus…? A fé que nos ensinam os personagens do presépio é
robusta e sólida. Eles permanecem firmes, cumprem com humildade e amor o seu
papel. Que é pedido de Maria, a grande Mãe de Deus? Simplesmente que cuide do
seu Filho, não mais do que isso… E isso já é tudo. O teólogo inglês, Cardeal John Henry
Newman, canonizado há pouco pelo Papa Francisco – junto com a nossa querida
Irmã Dulce – falava sobre essa simplicidade de alma que nos leva a ver as
coisas de Deus nas mais banais realidades humanas. Sendo já um homem maduro e
de enorme fama intelectual, ele se converteu ao catolicismo e viveu o resto dos
seus dias como modesto sacerdote católico – nunca foi bispo e o título
honorário de cardeal ele o recebeu já na avançada velhice. Quando lhe
perguntavam como podia se contentar com tão pouco e distinguir o que Deus
queria da sua vida, ele respondia: ‘Eu não peço ao Senhor que me mostre todo o
caminho, mas apenas o próximo passo. O panorama completo só Ele vê.” Newman
morreu nessa mesma obscura humildade e, no entanto, nenhuma figura foi mais importante
do que a dele para a renovação do catolicismo inglês e norte-americano nos
últimos dois séculos. É geralmente assim que Deus nos
mostra a Sua vontade: Ele indica apenas o próximo passo. Se os nossos dias
deixarem de ser um amontoado febril de atividades para se transformarem em
chances únicas de fazer o que Deus quer, então mesmo as coisas mais pequenas se
nos apresentarão como uma maravilhosa façanha de amor e alegria… Não podemos
escapar das dificuldades, mas podemos, com a serenidade e a força que encontramos
na oração, enfrentá-las como Maria e José o fizeram. O que nos cabe, o que nos é
possível, é dar o próximo passo, aqui e agora, confiando nos planos de Deus. Isso
é o essencial. Todo o resto é relativo, vem por acréscimo. Por um paradoxo
curioso determinado por Deus mesmo, as grandes coisas começam sempre pequenas.
É o fermento da massa, como na parábola. Nenhum plano, por melhor que seja, se
realiza sem o cuidado dos pequenos detalhes, pacientemente, um após o outro. Não
é à toa que projetos realmente benéficos e bem-sucedidos, como os Alcoólatras
Anônimos, de profunda orientação cristã, se baseiam num motto como ‘só por hoje’. Não é à toa que Santa Teresa de Calcutá, quando
lhe perguntavam como conseguia ajudar a tanta gente, respondia: ‘Eu não
consigo… Eu só consigo ajudar a esta pessoa que está agora na minha
frente.’ Se o novo ano trará – como sempre se
deseja – sucesso, realizações e saúde, não o sabemos. Não sabemos nem se estaremos
aqui para ver o seu fim. Tudo está nas mãos de Deus. Se tivermos, porém, feito o
nosso melhor para responder, com alegria e amor, ao que o Senhor pede de nós –
desde uma palavra boa, uma atitude humilde, uma boa-vontade de perdoar e ouvir
até a coragem de rejeitarmos o pecado e de pedirmos perdão – então o ano terá
sido ricamente proveitoso. E, em lugar do gosto amargo das oportunidades
perdidas e do amor desperdiçado, sentiremos a alegria infinita que arde no
coração de quem, humildemente, como Maria e José, dizem sim a Deus… ________________ [1] Monja beneditina
na Abadia de Santa Walburga, Alemanha; doutora em História da Igreja
contemporânea pela Universidade de Navarra, Espanha; professora de História e
Doutrina Social da Igreja; autora de ‘Lições de Gustavo Corção’, Quadrante, SP.
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